Uma menina de andrajos deitada no asfalto, olhando o formato das nuvens
É claro que ela deve rir muito – o riso de Demócrito – das vitrines dos shoppings
Talvez seja uma atriz que já tenha, lindamente, interpretado Ofélia
Como são invulgares essas garotas com fuzis de livros e sem vestido!
Mas são melhores os homens! Eles são mais sagazes e cônscios da arte livre de gostar
É claro que uma Pagu me faria bem! Pena que essas já não existem
Mas as mulheres que tive também eram díspares e liam Mrs. Dalloway
Eram profundas e feitas de orgasmos até onde só as divas alcançam
Como eu, mas de mim eu já estou cheia, tenho-me sem parar
Gosto mesmo é de chupar falos inefáveis de pêlos e cabelos
Mas essa menina! Essa menina me fez querer a vida!
Foi uma fagulha que me remeteu a tudo que é feito para que eu respire:
Mente, letras, gim, abelhas, buracos negros em espirais, sangues, transtornos...
E tudo distante de pureza... Pureza? Como assim? Que palavra é essa?
Todos os corpos estão sujos e toda sujeira nua de verdade
Castidade é como cacto numa redoma vermelha, me diz as dadaístas abelhas
Minhas abelhas que zumbem no encéfalo me matam sempre que eu acordo
Vou respirando a sorte, ou azar, de ser um pouco do sonho da noite de insônia
De ser uma esquizofrênica tão lúcida e invisível sem escolha
Infinitos mistérios que jamais abraçarão eloqüência!
Desse desespero, um dia eu encontrei a definição lendo uma poetisa suicida
Uma definição que deu o significado exato para os meus sentidos: oca!
Oca! Como se eu fosse sem conteúdo! Não sei pensar com destreza
Sou apenas abelhas sem raciocínio que não compreendem
Cada vez mais vazia! Cada vez mais difícil! Medo enorme de apagar!
A adolescente escrevia um poema, e eu li: “Como é lúgubre a certeza...
A certeza de como são crassas essas letras que bordo! De como sou tão nada!
Como essas letras são impossíveis de serem boas! Vocabulário ralo para ser poeta!”
Oh! Menina obcecada! Como eu me empolgo por você ser tão desse jeito!
Quer chocar e nem isso consegue, eu sei. Eu também!
Para todos os humanos: um prato de fezes
Para todos os amantes: um cu
Para todos os bêbados: muita pinga e esperança
Para todos os burgueses e classe média parva: uma prisão
Nem é preciso desejar, eles vivem nesse lugar. E nem sabem que não respiram.
Estupro-me todos os dias! Sou prostituta masoquista!
Contorço-me sempre, até sentir dores e prazeres
Nelson Rodrigues se inspiraria em todas essas hipocrisias que eu sei
Que eu sei que nunca nos faremos aceitar. Seremos fodidas, sempre
Sabemos que todos os corpos banhados são mais sujos do que de indigentes
Comi sangue de mênstruo e das navalhadas que eu fiz em mim mesma
Fui tão flexível que consegui morder minha clítores e muito gozar
Minha língua sempre quis muito, sugou pênis com todas as forças que eu tinha
Perdi-me em buracos negros de labirinto em espiral
Vivi bocas – em realidades e em sonhos lúcidos – que nunca enxerguei
Bem conheço o nosso mundo, pequena: abelhas na mente, álcool e sexo
Meninos, homens, garotos, todos maravilhosos em demasia, inebriam
Desejamos demais, com a consciência de que o amor não existe
Se acreditássemos que pudéssemos, realmente, amar, aí então...
Aí então talvez vivêssemos uma leveza!
Mas isso não seria apenas bom. Seria bem menos prolífero
Isso eu sei assim que seria. Como amor não há conteúdo de gim
Tristeza e ceticismo amam mais a poesia
Do que paz, amor, tranqüilidade e alegria
Somos mesmo apenas artistas toscas e desgraçadas!
Ser real é mesmo impossível
Gostar demais é mesmo triste
Querer demais é mesmo estranho
Pensar sem algo é mesmo injusto
Injusto e ilusório deveras
Sua imagem foi uma insígnia disso tudo, garota heterossexual
Sua existência me fez saber que esperei incontáveis anos
Para chegar aqui hoje e descobrir estar viva por apenas uma palavra
Uma palavra: obcecação
O que acontecerá eu não sei. O mais provável é que nada.
Apenas o que sei é que é preciso matar a mediocridade
É preciso matar a mediocridade de tudo
E vamos crescendo como o tal cacto da redoma de sangue
Cheias de espinhos e com luzidias obcecações
Caso contrário, sobreviver nada será senão crime!
Paula Cicolin: é um ínfimo ser vivo patológico com um enxame de abelhas no cérebro que estuda filosofia na Universidade Federal de São Paulo.
segunda-feira, 19 de maio de 2008
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