Lavoura Arcaica é uma obra que sangra. Sangra verdades, atitudes e, principalmente, palavras. É uma verdadeira verborragia, mas uma verborragia que não agride, complementa; que não obscurece, clareia. É uma forma de dizer gritando ou silenciando (como em certas cenas do filme). Eu gosto é das palavras com textura, com paladar, com cor. E quando as palavras não se fazem mais necessárias, eu gosto é de um silêncio oco, que dói no ouvido, esse, pra mim, é um silêncio que me diz alguma coisa.
O livro (ou o filme, se preferir), conta a história de André, que sai de casa se deixando guiar pelo sentimento de sufocamento em relação à figura do pai. Esse seria o cerne da narrativa, mas traz muito pouco do que a obra oferece na medida em que se alarga com discursos e reflexões sobre a vida. A partir de um pente no alto de um coque, por exemplo, o autor alarga a discussão e vai tratar do papel da figura materna no meio de uma sociedade patriarcal.São muitas as vertentes a serem exploradas. Uma delas é a relação de André com Ana, sua irmã, que, para ele, é a figura da tentação. No filme, essa questão aparece sugerida pelo posicionamentos das câmeras numa das mais lindas cenas: quando Ana, em uma festa, dança aos moldes orientais, demonstrando sua descendência com os quadris e busto.
Raduan Nassar, autor do livro, traz pra obra muitos dos elementos que permearam a sua vida. Apesar de brasileiro, sua raiz sírio-libanesa é transportada para sua escrita bem como sua experiência sensorial com a Bíblia e o Corão: muitos sermões do pai de André, à mesa, remetem às parábolas do primeiro ou ensinamentos do último.
Mas, talvez, o caráter sinestésico de Lavoura Arcaica seja o ponto alto para o envolvimento do leitor com a obra: a fome insaciável de André torna-se a nossa fome. E é uma fome de espírito, que trasborda pelas páginas dos livros. Podemos sentir os pés do personagem na terra úmida, nos cobrimos de folha junto com ele, sentimos sua cólera ou sua glória ao deitar com Ana na casa velha. Conseguimos verticalizar no personagem. O coração fica molinho, molinho, escorrendo, na medida em que André (interpretado no filme por Selton Melo) se vê incapaz de (con)viver com o amor que sente pela irmã. Ainda que seja um ultraje, nos vemos capazes de velar por esse amor incestuoso. O silêncio de Ana, que no filme não tem uma única fala, é um silêncio arrebatador, é daquele tipo de silêncio oco já citado, o oco que diz muita coisa, que dói.
A volta pra casa de André, é assinalada por todo o livro. Acho até que há uma pretensão do autor em deixar a sugestão dessa volta desde o princípio da história: "Estamos indo sempre pra casa" assim como "o gado sempre vai ao poço". É o magnetismo do seio familiar da época, década de 1970. Ao mesmo tempo que André desejava sua libertação, não havia norte em sua vida sem os ensinamentos e valores do pai. Enquanto ele pensa sobre isso no decorrer do livro, ele reflete sobre como a vida se dá na fazenda, junto com seus irmãos e percebe que da mesma forma que não se vê como participante daquela realidade, está preso a ela de maneira umbilical. André é a própria antítese luz e sombra (no filme), lucidez e loucura. Ele queria ser o profeta de sua própria história, estava cansado de "idéias repousadas".
Em diálogo final com o pai, já em casa outra vez, André expõe suas angútias em atropelos de palavras: "Jamais os abandonei, pai. Tudo o que eu quis ao deixar a casa foi poupar o olho torpe ao me verem sobrevivendo à custa de minhas próprias vísceras". O pai termina por julgá-lo como um desertor da palavra e tenta persuadí-lo a acreditar que a conversa é a melhor forma de entendimento, mas o filho, desacreditado lança mão de seu amargor há muito cultivado: "Não acredito mais na troca de pontos de vista. Estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.[...] Ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo, pra mim, seriam sempre frutos tardios quando colhidos". O pai encara tudo aquilo como ingratidão e, por fim, sua mão de ferro se abate sobre toda aquela discussão, despedaçando-a e espalhando seus pedaços pela casa de forma a nunca mais serem encontrados, mas figurariam ali como marcas, agora, indeléveis.
Reflexões propostas:
"O amor na família é a suprema forma da paciência..." (pai);
"As nossas vergonhas mais escondidas nos traem no rubor das faces" (André);
"Não é sábio quem se desespera e é insensato quem não se submete" (pai);
"Eu que não sabia que o amor requer vigília..." (André);
"É preciso começar pela verdade e terminar pela verdade." (pai);
"Se o pai quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição." ( André)
Amanda Borba é: estudante de jornalismo da UFPE e acredita que a arte é a mais sincera de todas as mentiras.
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